Peso leve é o que cansa o homem.

Hoje, estamos celebrando o lançamento de mais um livro. Ainda não surgiu quem tentasse calcular quantos livros já foram publicados, vendidos, doados, perdidos, inutilizados, lidos e relidos. Alguns desses tesouros, por qualquer razão, são repassados de pai para filho, e conseguem atravessar diversas gerações, quando não arrancados da estante por um amigo ou lançado à lixeira por alguém que tenha nos ferido na alma. Contudo, o certo é que quase todos os exemplares publicados venham integrar o rol dos esquecidos. Não importa se devorados por traças ou esmagados pelas mesinhas cambetas para as quais serviram de apoio, ou, até mesmo, queimados para salvar a vida dos seus donos nos tempos difíceis, esses pequenos emaranhados de páginas que abrem as janelas do infinito conseguem pegar atalhos para cruzarem, inesperadamente, a nossa estrada. Às vezes seguem em capa dura nas livrarias dos bairros nobres, nas mãos dos bem cultos e dos esnobes, mas em outras ocasiões saem por um real nos sebos imundos da região central, se perdendo no caminho para acabarem despedaçados nas mãos de um menino pobre, que um dia poderá dizer que chegou a sonhar.

Inúmeras razões levam alguém a construir uma obra. Há quem carregue a pretensão de se tornar famoso, ganhar milhões, medalhas, prêmios e demais honrarias, enquanto outros desenvolvem seus inventos no intuito de se destacarem no mercado de trabalho, acessando boas universidades ou marcando pontos no mestrado. Com muita sorte, conseguirão até pagar algumas despesas ordinárias. Sabe lá? Vi alguns escreverem para alardear um amor não correspondido ou para reluzir no espelho o ego distorcido. De qualquer modo, jamais faltará quem apenas elabore “sem quê, nem por quê”, a fim de dar forma aos seus pensamentos e emoções em homenagem à própria existência. É bem verdade que esses nem sempre são bem-sucedidos quanto à matéria, mas, com certeza sempre o serão no espírito. Permitem que através de suas mãos transborde o conhecimento, imbuídos dos mesmos impulsos que os levaram a adquiri-lo, ou seja, a aceitação da ignorância e a busca pelo saber infinito.

Bertrand Russell, em uma de suas obras afirma que “homem algum adquire muito conhecimento, a menos que a aquisição em si mesma lhe seja agradável, sem levar em conta qualquer consciência da utilização que dele se possa fazer”. A validade da observação proferida pelo magnífico filósofo inglês não se deve ao fato de ter sido por ele construída, mas por passagens da vida de alguns notáveis. Albert Einstein, por exemplo, ao concluir seus estudos a respeito da Teoria da Relatividade, dirigiu-se até a cozinha onde estava a sua esposa, e, ao colocar um pedaço de papel sobre a mesa, serenamente, disse: “o mundo mudou.”. Realmente, suas pesquisas não só transformaram o planeta, como por pouco não foram usadas para a extinção da espécie humana. Creio que não deviam ser esses os frutos desejados pelo cientista depois de ter dedicado os seus dias aos problemas de Física e Matemática.

No campo das artes, Degas, certa vez, ao receber duras críticas a respeito dos seus quadros, foi advertido de que os críticos não iriam aceitá-los no vernissage. Em resposta, o gênio das maravilhas do óleo sobre tela retrucou: “Quem disse que eu pinto para os salões? Eu pinto para mim! E eu gostei!”. Van Gogh, em seus últimos momentos, revelou ao seu irmão que finalmente acreditava estar aprendendo a desenhar. Embora nenhum dos seus trabalhos tenha sido homenageado, muito menos lhe rendido algum tipo de compensação financeira, convertia o pouco que recebia em material para tinta e tela. De semelhante sorte, Monet também pintava desesperadamente, mesmo quando lhe faltava o mínimo para a própria subsistência. E não foram raras as vezes que escreveu para o grande Émille Zola, naturalista francês, que lhe oferecia trezentos ou quatrocentos francos por um lote de quadros. Então, o que teria servido de motivação para a realização de tantas obras senão o genuíno amor à arte? Talvez a questão já tenha sido respondida por Salvador Dali ao declarar: “Às vezes eu penso que um dia morrerei por uma overdose de satisfação.”.

Se o presente discurso é proferido na Terra da Garoa, nada mais oportuno do que citar Mário de Andrade, que depois de todo o sucesso de seus romances, veio com a seguinte observação: “Devo confessar logo que não sei o que é belo, nem sei o que é arte.”. A humildade do exímio escritor paulista nos faz pensar naquilo que costumam compreender sobre a vida dos artistas, considerada tão boa quanto fácil, porque simplesmente buscam a inspiração e criam. Entretanto, Guimarães Rosa ousou discordar, sob o argumento de que, na verdade, “carregar peso leve é o que cansa o homem.”. No entanto, para esse glorioso fardo, o poeta Cassiano Ricardo nos deu um alento: “Defendo o que eu gosto e quem eu gosto até o fim, mesmo que para isso eu fique em pedaços. A vida pode te deixar em pedaços, mas o amor te deixará inteiro.”.

Jack Kerouac, porta voz dos Beatniks, foi escrevendo sem nenhuma pretensão ou sonho. Todavia, depois que ficou famoso, questionou: “Agora que sou célebre, como vou poder escrever o que eu escrevia quando não passava de um desconhecido?”.

A arte não é explicada, embora os acadêmicos inutilmente teimem em reduzi-la a uma equação de segundo grau. Nada mais ilustrativo do que uma passagem da vida de Modigliani, que encompridava o pescoço de suas modelos. Certa vez, uma senhora encomendou um retrato da filha. Ofereceu-lhe um bom dinheiro, que era aquilo que o pintor mais precisava. A menina sentou à frente do artista que, rapidamente, criou o seu retrato. Quando mostrou a obra, a mãe ficou furiosa e esbravejou: “Minha filha não tem esse pescoço!”.  E assim, como se esperava, pediu o dinheiro de volta. Porém, a filha, com uma alegria imensa, falou: “Mãe, eu achei lindo!”. Por isso que quando perguntado sobre o porquê de tantas curvas em suas obras, o arquiteto Oscar Niemayer deu uma resposta tão simples quanto preciosa: “Porque eu gosto.”. Foi a mesma colocação feita pelo artista colombiano Fernando Botero, autor de quadros compostos por figuras humanas volumosas, ou gordas, segundo seus admiradores. Nos momentos em que foi provocado, explicou de forma bem didática: “se alguém pega uma modelo e a retrata tal como ela é, o resultado é um horror de banalidade, de superficialidade, de estupidez”.

Buscar uma resposta sobre os motivos que levam alguém a escrever um livro, compor uma música, produzir um quadro ou uma escultura, significa correr o risco de incorporar a personagem da obra de George Orwell que trabalhava em uma livraria. Um dia, ao manusear um exemplar bem robusto que discorria a respeito das borboletas, ficou refletindo por que alguém escreveria sobre o tema. E quem se prestaria a ler algo do gênero? É bem provável que nem o pesquisador de borboletas soubesse explicar as razões, mas não há dúvidas de que o seu estudo contribuiu para que se tornasse um ser humano melhor. Se “quanto mais aumenta nosso conhecimento, mais evidente fica nossa ignorância.”, como dizia John Kennedy, devemos combinar a referida máxima às conclusões de Leonardo Da Vinci: “pouco conhecimento faz com que as pessoas se sintam orgulhosas. Muito conhecimento, que se sintam humildes.”.

Discurso elaborado e lido pelo advogado Sergio Ricardo do Amaral Gurgel na solenidade de lançamento do livro “Amaral Gurgel, Uma Saga nos Trópicos”, promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.

 

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